Entre um texto bem desenvolvido e a apresentação de imagens potentes, “O Diabo de Cada Dia” (2020) fica com os dois. Valendo-se da narração da história em off — isto é, sem que o locutor se faca conhecer —, boa parte do filme do diretor americano Antonio Campos, filho do jornalista mineiro Lucas Mendes, opta por transitar entre dois tempos, passado e futuro, sem prejuízo nem de um nem do outro.
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Não é todo filme que pode se jactar de levar a trama sem maiores percalços usando expediente tão arriscado — aliás, é justamente por meio desse recurso que o enredo se torna de fato harmonioso. Campos despeja sobre o público uma pletora de informações, todas em alguma medida ligadas entre si, e cuja absorção se torna mais orgânica graças à explanação do que é mostrado, feita à luz da metalinguagem, uma vez que é Donald Ray Pollock — autor do romance em que “O Diabo de Cada Dia” se baseia — quem conta a história. O que deixa clara a importância que o diretor deseja conferir ao recurso.
Não se pode dizer que o roteiro não tenha vácuos e siga em uniformidade do princípio ao fim, o que também parece ter sido uma questão de preferência consciente, visando a chamar o espectador a tomar parte nos rumos da produção ao máximo. Campos deixa larga margem para que a audiência teça suas próprias conjecturas sobre o que é levado à tela, como se fosse mesmo de literatura, de um livro, respeitando — e mesmo venerando — o trabalho de Pollock. Há momentos em que o diretor pesa a mão, sugerindo quase didaticamente as intenções do filme, povoado à mancheia de personagens malditos que, de uma forma ou de outra, se permitiram corromper pela profissão de uma fé e pelo discurso religioso.
O começo do filme já deixa bastante claro o que se vai assistir ao longo de quase duas horas e meia de projeção. Willard Russell, encarnado com vivacidade por Bill Skarsgård, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra do Vietnã (1955-1975), volta para Knockemstiff, Ohio, ainda assombrado pelas tantas memórias dos horrores aos quais tivera de se submeter. O único respiro a que “O Diabo de Cada Dia” se permite é exatamente nesse introito breve, momento em que se desdobra uma espécie de manual do primeiro tipo central da história. Abordando o mal sob as infinitas naturezas sob as quais é capaz de se manifestar, “O Diabo de Cada Dia”, contando com a direção meticulosa de Antonio Campos, se desenrola sobre as grandes questões do homem à luz de sua fragilidade espiritual, que, à medida que o curso da história se adianta, se torna ainda mais evidente. Como sugere Donald Ray Pollock em seu livro, de que nasceu o filme, toda a vigilância quanto a combater as trevas é pouco. Da Revista Bula